quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Manual do Filho da Puta

            E então você decidiu que quer ser do mal – até aí, tudo bem, tudo previsível, mesmo porque quem nunca foi vilão jamais será mocinho, o mundo é um moinho como na canção e, desiludidos por ele, temos sede de vingança. Como parar de fumar e fazer dieta, planos maléficos também são fáceis demais na resolução de ano-novo e no divã do psicanalista. A ação é um pouco mais complicada – mas pense naquele amor que o traiu, na sua mãe que sempre gostou mais do seu irmão mais novo e todos esses problemas que todo mundo tem, mas que, como qualquer anti-herói, você pensa que são exclusividade sua. Agora, relativize as coisas: Olho por olho, dente por dente, quem com ferro fere com ferro será ferido, aqui se faz aqui se paga são, de fato, motes muito mais antigos do que qualquer ladainha humanista.
            Importantíssimo lembrar: Não dirija seu veneno apenas aos seus desafetos declarados, pois todos merecem sofrer. Papel e caneta na mão, anote aí: Ser extremamente sedutor (assistir a filmes de psicopatas para aprender). Fazer o possível para ter uma vida de playboy daqueles de antigamente. Investir na carreira política (com o cuidado de se envolver com as pessoas erradas). Dar em cima da mãe do seu melhor amigo. Transar com a irmã da sua ex-namorada. Não se esqueça dos detalhes: Imprimir quatro vezes seu ingresso de cinema comprado pela internet. Ajudar seu priminho caçula a conseguir drogas. Mentir muito, despudoradamente, mentir com gosto.
            Com o tempo, você vai perceber que se tornou temido e também extremamente desaprovado. Nessa hora, chore copiosamente. Jure que tudo não passa de um mal-entendido. Peça perdão, mande flores – se o ofendido tiver alergia, ainda melhor. Roube, mas roube com classe – assalto à mão armada, nem pensar. Você agora está no topo da cadeia alimentar do crime. Gerindo sua própria máfia. No linguajar dos seus subalternos, fodendo geral (não necessáriamente no sentido literal da expressão)
            Enterre os seus sentimentos. Seja frio e cínico. Não ouse se apaixonar. Não ouse odiar, para não ceder a um ímpeto incalculado. Seja mau, apenas. Difícil? Depois de algumas digressões, é provável que você tenha se esquecido das teorias que o alavancaram para o sucesso. Pois saiba que precisamente os alicerces dos seus requintes de crueldade hão de persegui-lo até o fim dos seus dias (afinal, trazem um senso de justiça, ainda que mal-elaborado). Quiçá com sorte você escape, mas lembre-se: Não basta ser sofisticado. É preciso ser esperto.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Whining

            Tempos atrás, num feriado de setembro, fui visitar uma amiga que recentemente mudou-se para Cascavel. Conhecendo bem a cidade, não tendo nenhum interesse maior em permanecer por lá e dispondo de tempo suficiente, acabamos por decidir que uma visita rápida à Argentina (mais especificamente, a Porto Iguaçu) não era má ideia e, no dia seguinte à minha chegada, cantando Chico Buarque a plenos pulmões, dirigimo-nos à fronteira com a mais nobre das intenções: Comprar.
            Acontece que, como resolvemos a viagem sem muito planejamento, o quarto do nosso hotel era terrível, motivo pelo qual eu desci até a recepção para reclamar da água do chuveiro que não esquentava. Nesta ocasião, um homem de meia-idade que estava na fila – educadíssimo – cedeu-me seu lugar. Encontramos esse mesmo homem no Free Shop horas mais tarde (eu precisava urgentemente de uma garrafa de Drambuie) e, enquanto escolhíamos alguns vinhos, ele veio até nós para recomendar um Malbec premiado. Agradeci a ajuda, mas não levei o vinho – era caro demais e eu não pagaria aquilo por uma bebida que não havia experimentado.
            Um dia e meio depois, saí para jantar sozinha – minha amiga, que tem cento e dois centímetros de quadril, havia se engraçado com um turco. Qual não foi a minha surpresa ao perceber que, na mesa logo ao lado da minha estava o senhor que fora tão gentil comigo por duas vezes em minha curta estada! Ele me cumprimentou e retribuí com um sorriso. Disse-me que o vinho que estava tomando era o mesmo que havia me recomendado, e pediu ao garçom que servisse uma taça “à senhorita”, para que eu o provasse. Senti certo desconforto ao perceber que a esposa do senhor retornava naquele exato instante. A mulher, muito elegante, sorriu para mim e comentou que Mendoza produzia os melhores vinhos dali, e que se eu decidisse comprá-lo, não deveria deixar de levar também o Cabernet Sauvignon. Meu incômodo deu lugar a um quase choque. Como assim, ela não me perfurara com o olhar? Como assim, ela não viera em minha direção e derramara o conteúdo da taça em meu vestido?
            Talvez eu estivesse valorizando demais os meus encantos. Mas não era isso: Eu sabia que o senhor não estava interessado em mim. Por que então imaginei que a sua mulher reagiria de outra forma? A resposta é óbvia, e um tanto inconveniente: Acostumei-me tanto ao senso-comum que ele havia-se impregnado em mim, surgindo com despropósitos como aquele quando eu menos esperava. Céus, como pude tornar-me tão classe média, no pior sentido da palavra? Afinal, o espetáculo da vida não se resume a oscilar entre a felicidade do comercial de margarina e o drama da novela das oito. Ao menos não para os esclarecidos.
            Sem mais devaneios: Acabei comprando o tal vinho, que era uma delícia. Porém o passeio não me rendeu somente algumas aquisições etílicas. Percebi, muito contrariada, que por vezes bradamos contra a sociedade sem notar que a mudança efetiva de mentalidade – mesmo a nossa – só acontece quando estamos atentos, comprometidos com nossas convicções até nos momentos mais banais. Do contrário, jamais estaremos acima das convenções e jamais seremos livres – no máximo, mal-acorrentados.